quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Em volta dessa rua, uma cidade...

Ainda não eram 8 horas da manhã da terça-feira, e lá estava o Lucas* na padoca, calibradaço como sempre.
* Nome fictício

Nunca entendi o Lucas.

Em dois anos que moro aqui, nunca o vi sóbrio um único dia. 


Sempre correndo de um lado para outro, super "atarefado", um dia desesperado bradando seguidas vezes que foi contratado para preparar um arroz de carreteiro e compraram pertences para feijoada, outro dia desesperado porque sequestraram sua filha e ele não tinha como pagar o resgate.

Maldade falarem uma coisa dessas para o Lucas — ele acredita, coitado.

Mas naquele dia o Lucas estava especialmente perturbado com a manchete do jornal: 


MULHER DISPARA 12 TIROS NO EX 

Estava preocupado com o entusiasmo das mulheres comentando a notícia, temia que a moda pegasse. 

No caso dele, uma preocupação bastante justificável.

Normalmente fujo de bêbados, ainda mais no café da manhã, mas a terça-feira amanheceu bonita demais. 


E a conversa com ele falando e eu ouvindo prosseguiu durante todo o café até que, na hora de ir embora, o Lucas me contou que já teve moto. 

Mostrou as cicatrizes para comprovar. Comprovavam.

Ele sabe exatamente o porquê de os motoristas não verem as motos.

Hoje o Lucas não anda mais de moto, nem de carro. 

Ainda bem, pensei eu, porque alguém não sobreviveria logo no primeiro dia.

Mas foi aí que ele me contou sobre o acidente que aconteceu domingo à noite na esquina pertinho aqui de casa, e do qual eu só tinha ficado sabendo porque deixou um monte de destroços e uma enorme mancha de óleo.

Vi os destroços na segunda-feira, mas não dei atenção porque, pelo que restou espalhado no local, só podia ser uma colisão violenta entre dois carros, pensei eu. 

Não foi.
Vídeo e reportagem: http://ricmais.com.br/sc/transito/videos/homem-morre-em-um-acidente-entre-carro-e-moto-no-bairro-forquilhas-em-sao-jose/

A moto acabou assim, em vários pedaços, e o carro chegou a girar com a pancada, ficando deste jeito:
Vídeo e reportagem: http://ricmais.com.br/sc/transito/videos/homem-morre-em-um-acidente-entre-carro-e-moto-no-bairro-forquilhas-em-sao-jose/

A imprença com ç tendenciosa e sensacionalista como sempre enfatizou a "alta potência" da moto — uma XTZ Lander 250 de velocidade máxima real 131,2 km/h. 

"Alta potência"... então tá.


A imprença enfatizou que o piloto foi arremessado a "10 metros de distância" — como se isso fosse indicativo de que o piloto estivesse em alta velocidade, consequentemente a causa do acidente.


Apenas 10 metros? Então talvez ele não estivesse.  


Na minha avaliação o Thiago, esse o nome do piloto, podia estar a uma velocidade compatível com o local a aproximadamente 80 km/h, porque senão ele teria sido arremessado a uma distância muito maior. 
Imagem: Google Maps Google Street View

Esse é o entroncamento. A primeira foto foi batida olhando do outro lado, esta tem a visão do Thiago; esta foto é antiga, e hoje o ponto de ônibus de cobertura verde tem a cobertura vermelha que você vê na primeira foto.

O local não é área urbana e oferece ampla visibilidade. Não há placas de sinalização limitando a velocidade a 60 km/h, e esse trecho fica naquela área cinzenta do subúrbio onde você não sabe se está na estrada Geral do Alto Forquilha ou na avenida Antônio Jovita Duarte, uma via urbana. 

O que aconteceu de verdade, mas a imprença não noticiou, foi que a preferencial era do Thiago e o motorista atravessou o carro na frente dele — o Thiago não teve tempo ou reação de frear. 

Thiago morreu no impacto, quando caiu ao solo seu coração já não batia mais. 


Por que o motorista atravessou na frente da moto?

Tenho minhas suspeitas. 

Pelo horário, domingo 20:30, a primeira coisa que eu investigaria é se o motorista passou a tarde bebendo. 

Na verdade, investigaria se ambos beberam, porque o hábito é amplamente disseminado — não tenho como saber se o Thiago não freou porque não teve tempo ou porque não teve reação.

Eu evito sair aqui na região nas tardes de domingo, a quantidade de bêbados ao volante (e ao guidão) é coisa assustadora.

Também investigaria se o motorista não estava falando ao celular, o que seria outro motivo para não ver a moto se aproximando.

Porque mesmo que o Thiago estivesse na velocidade máxima da moto, ele estaria plenamente visível para quem fosse cruzar a avenida.

Mas essas coisas a imprença não investiga nem comenta. 

Eles seguem a política "O motociclista é sempre culpado" porque os motoristas são a maioria do público da imprença sensacionalista. 

Se a imprença investigasse, poderia ser chamada dignamente de imprensa. Mas a imprença não faz por merecer.

Mas também não estou dizendo que o Thiago não errou.

Logo antes do entroncamento, existe uma lombada para reduzir a velocidade na preferencial. Foi feita depois que o carro do google passou por lá.


Tivesse o Thiago reduzido a velocidade, e não passado pela lombada ignorando sua finalidade, poderia ter evitado o acidente e agora estaria com a família.

O motivo de a colisão ter sido tão violenta, apesar de uma velocidade que suponho não ter sido extremamente elevada, apesar de superior à recomendável, foi que a moto se chocou com o ponto mais reforçado do carro, a coluna principal A.


Outras áreas do carro são feitas para serem deformadas durante uma colisão, diminuindo os danos à célula de sobrevivência dos passageiros — a área "indeformável" do veículo — mas a coluna A é o pilar de resistência dessa célula.  

No entanto, para a imprença, não interessa analisar os detalhes. Quanto mais imagens chocantes e comentários sensacionalistas, maior a audiência e maior o valor do patrocínio. 

Se a imprença desse atenção aos cidadãos anônimos que estavam por ali na noite do acidente, ficariam sabendo que o Thiago havia tirado uma foto com a filhinha no colo naquela mesma noite antes de sair de casa.

O Lucas me contou sobre a foto e se calou com o olhar perdido, distante. 


Naquela manhã de terça-feira, ele precisava, ele tinha que contar isso para alguém.

Hoje há um singelo vasinho de flores no local.

Sabe, hoje entendi melhor o Lucas.


Um abraço,


Jeff

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