* Nome fictício
Nunca entendi o Lucas.
Em dois anos que moro aqui, nunca o vi sóbrio um único dia.
Sempre correndo de um lado para outro, super "atarefado", um dia desesperado bradando seguidas vezes que foi contratado para preparar um arroz de carreteiro e compraram pertences para feijoada, outro dia desesperado porque sequestraram sua filha e ele não tinha como pagar o resgate.
Maldade falarem uma coisa dessas para o Lucas — ele acredita, coitado.
Mas naquele dia o Lucas estava especialmente perturbado com a manchete do jornal:
MULHER DISPARA 12 TIROS NO EX
Estava preocupado com o entusiasmo das mulheres comentando a notícia, temia que a moda pegasse.
No caso dele, uma preocupação bastante justificável.
Normalmente fujo de bêbados, ainda mais no café da manhã, mas a terça-feira amanheceu bonita demais.
E a conversa com ele falando e eu ouvindo prosseguiu durante todo o café até que, na hora de ir embora, o Lucas me contou que já teve moto.
Mostrou as cicatrizes para comprovar. Comprovavam.
Ele sabe exatamente o porquê de os motoristas não verem as motos.
Hoje o Lucas não anda mais de moto, nem de carro.
Ainda bem, pensei eu, porque alguém não sobreviveria logo no primeiro dia.
Mas foi aí que ele me contou sobre o acidente que aconteceu domingo à noite na esquina pertinho aqui de casa, e do qual eu só tinha ficado sabendo porque deixou um monte de destroços e uma enorme mancha de óleo.
Vi os destroços na segunda-feira, mas não dei atenção porque, pelo que restou espalhado no local, só podia ser uma colisão violenta entre dois carros, pensei eu.
Não foi.
Vídeo e reportagem: http://ricmais.com.br/sc/transito/videos/homem-morre-em-um-acidente-entre-carro-e-moto-no-bairro-forquilhas-em-sao-jose/
A moto acabou assim, em vários pedaços, e o carro chegou a girar com a pancada, ficando deste jeito:
Vídeo e reportagem: http://ricmais.com.br/sc/transito/videos/homem-morre-em-um-acidente-entre-carro-e-moto-no-bairro-forquilhas-em-sao-jose/
A imprença com ç tendenciosa e sensacionalista como sempre enfatizou a "alta potência" da moto — uma XTZ Lander 250 de velocidade máxima real 131,2 km/h.
"Alta potência"... então tá.
A imprença enfatizou que o piloto foi arremessado a "10 metros de distância" — como se isso fosse indicativo de que o piloto estivesse em alta velocidade, consequentemente a causa do acidente.
Apenas 10 metros? Então talvez ele não estivesse.
Imagem: Google Maps Google Street View
Esse é o entroncamento. A primeira foto foi batida olhando do outro lado, esta tem a visão do Thiago; esta foto é antiga, e hoje o ponto de ônibus de cobertura verde tem a cobertura vermelha que você vê na primeira foto.
O local não é área urbana e oferece ampla visibilidade. Não há placas de sinalização limitando a velocidade a 60 km/h, e esse trecho fica naquela área cinzenta do subúrbio onde você não sabe se está na estrada Geral do Alto Forquilha ou na avenida Antônio Jovita Duarte, uma via urbana.
O que aconteceu de verdade, mas a imprença não noticiou, foi que a preferencial era do Thiago e o motorista atravessou o carro na frente dele — o Thiago não teve tempo ou reação de frear.
Thiago morreu no impacto, quando caiu ao solo seu coração já não batia mais.
Por que o motorista atravessou na frente da moto?
Tenho minhas suspeitas.
Pelo horário, domingo 20:30, a primeira coisa que eu investigaria é se o motorista passou a tarde bebendo.
Na verdade, investigaria se ambos beberam, porque o hábito é amplamente disseminado — não tenho como saber se o Thiago não freou porque não teve tempo ou porque não teve reação.
Eu evito sair aqui na região nas tardes de domingo, a quantidade de bêbados ao volante (e ao guidão) é coisa assustadora.
Também investigaria se o motorista não estava falando ao celular, o que seria outro motivo para não ver a moto se aproximando.
Porque mesmo que o Thiago estivesse na velocidade máxima da moto, ele estaria plenamente visível para quem fosse cruzar a avenida.
Mas essas coisas a imprença não investiga nem comenta.
Eles seguem a política "O motociclista é sempre culpado" porque os motoristas são a maioria do público da imprença sensacionalista.
Se a imprença investigasse, poderia ser chamada dignamente de imprensa. Mas a imprença não faz por merecer.
Mas também não estou dizendo que o Thiago não errou.
Logo antes do entroncamento, existe uma lombada para reduzir a velocidade na preferencial. Foi feita depois que o carro do google passou por lá.
Tivesse o Thiago reduzido a velocidade, e não passado pela lombada ignorando sua finalidade, poderia ter evitado o acidente e agora estaria com a família.
O motivo de a colisão ter sido tão violenta, apesar de uma velocidade que suponho não ter sido extremamente elevada, apesar de superior à recomendável, foi que a moto se chocou com o ponto mais reforçado do carro, a coluna principal A.
Outras áreas do carro são feitas para serem deformadas durante uma colisão, diminuindo os danos à célula de sobrevivência dos passageiros — a área "indeformável" do veículo — mas a coluna A é o pilar de resistência dessa célula.
No entanto, para a imprença, não interessa analisar os detalhes. Quanto mais imagens chocantes e comentários sensacionalistas, maior a audiência e maior o valor do patrocínio.
Se a imprença desse atenção aos cidadãos anônimos que estavam por ali na noite do acidente, ficariam sabendo que o Thiago havia tirado uma foto com a filhinha no colo naquela mesma noite antes de sair de casa.
O Lucas me contou sobre a foto e se calou com o olhar perdido, distante.
Naquela manhã de terça-feira, ele precisava, ele tinha que contar isso para alguém.
Hoje há um singelo vasinho de flores no local.
Sabe, hoje entendi melhor o Lucas.
Um abraço,
Jeff
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