domingo, 27 de setembro de 2015

O escândalo da VW e o mundo das motos

O que o escândalo da VW tem a ver com o mundo das motos?

Mais do que você imagina.

O que aconteceu na vw é o exemplo perfeito daquilo que denuncio há anos aqui no blog — a submissão da engenharia ao marquetingue*, sem atinar para as consequências.
*marquetingue = marketing rasteiro

Mas primeiro, entenda o escândalo da vw.


Em anos recentes a vw vendeu 11 milhões de carros movidos a diesel em todo o mundo* promovendo como o grande diferencial de seus veículos uma tecnologia inovadora chamada TDI Clean Diesel, "diesel limpo".

Imagem: http://jalopnik.com/why-did-volkswagen-delete-all-of-its-diesel-ads-from-yo-1731691453
* Menos no Brasil, onde automóveis de passeio a diesel são proibidos. Somente a picape Amarok utiliza esse motor por aqui.

Supostamente esses motores seriam bastante econômicos e muito menos poluentes graças a essa nova tecnologia de gerenciamento eletrônico.

Mas isso era uma grande mentira, porque eles não se destacavam da concorrência quanto à poluição, apenas driblavam os testes de emissões feitos pelos órgãos governamentais — e a vw foi flagrada atolada até o pescoço nessa trapaça, não teve como negar.


O software de gerenciamento eletrônico do motor diesel usado em vários modelos estava programado para colocar o motor em modo de baixo nível de emissões quando detectava que o carro estava passando por um teste de poluentes e não em uso normal.

As bancadas de testes de emissões feitos nos EUA e Europa simulam o funcionamento do carro em alta velocidade com as rodas colocadas sobre roletes. 

A malícia do programa estava em detectar que o volante de direção estava fixo, indicando que o carro estava sendo acelerado sobre uma bancada de testes e não em uma via pública.

O controle de emissões era ativado apenas durante o teste em bancada, e então o motor trabalhava em uma condição de poluição mínima, mas também de entrega de potência reduzida — algo que um motorista perceberia e ficaria incomodado, mas totalmente ignorado pela bancada de testes.

Com o volante mudando a direção do carro — algo impossível de fazer sobre roletes — o software entendia que o veículo estava em uso normal e liberava o pleno desempenho do motor; as emissões subiam para níveis muitíssimo superiores aos permitidos pela legislação americana e, agora descobriu-se, também a europeia.

Emissões de diesel são muito mais tóxicas do que as de motores a gasolina. As autoridades americanas e europeias entenderam que a atitude era criminosa e não serão boazinhas com o grupo vw, que também inclui outros possíveis envolvidos na audi, porsche, seat, e skoda; bentley, bugatti e lamborghini não fabricam carros a diesel, muito menos as motos Ducati. E resta saber se os fabricantes de caminhões do grupo vw, a Scania e a MAN — esta última conhecida no Brasil como vw caminhões — estão livres do problema.

Quem forneceu para a volks essa central eletrônica com o programa "defeituoso" foi a BOSCH, que tirou o dela da reta já em 2007 com um documento informando a vw que aquela central eletrônica era um "dispositivo de teste" e que seu uso em veículos comercializados seria ilegal. Dito isso, venderam alegremente 11 milhões de "dispositivos de teste" para uso ilegal, e continuariam vendendo, se não fossem pegos com a boca na botija... 

Essa descoberta caiu como uma bomba na imagem de toda a indústria alemã, e todos os fabricantes de motores a diesel no mundo todo estão sendo investigados para ver se alguém mais embarcou nessa canoa furada. Multas bilionárias e muita gente boa passando temporadas na cadeia estão a caminho.
Imagem e reportagem: http://www.dailymail.co.uk/news/article-3248718/Volkswagen-set-Porsche-boss-new-chief-prepares-major-cull-executives-emissions-cheating-scandal.html

Beleza, mas por que a vw deu esse tremendo tiro no pé? 

Analisando o processo, a vw caiu nessa armadilha basicamente porque foram impostas metas irreais de emissão de poluentes, desempenho, consumo de combustível, redução de custos e aumento de vendas — e os engenheiros conhecedores dos limites possíveis não firmaram posição contra exigências inatingíveis por receio de perder seus empregos.


As leis da Química e da Física não permitem que um motor diesel atinja as metas contraditórias de alto desempenho, baixo consumo, baixas emissões e baixo custo de fabricação impostas pela diretoria com base nas leis e nas pesquisas de marketing.

Então a única maneira que a equipe de gêneos da nova geração de engenheiros encontrou foi trapacear pensando que o macete era tão espertamente esperto que nunca descobririam.

Trapacearam e deixaram todo mundo muito pouto da vida, porque jogaram as consequências para cima da saúde da população. Enfisema, asma, bronquite, insuficiência respiratória, insuficiência cardíaca, câncer, etc. — automóveis a diesel são muito populares na Europa.

Tá bom, e o que isso tem a ver com as motos?

Metas de alto desempenho, baixo consumo, baixas emissões e baixo custo de fabricação impostas pela diretoria (com base nas determinações do departamento de marketing) são repassadas a todos os engenheiros de todas as indústrias automotivas, inclusive a de motocicletas.

http://aminearlythereyet.com/fake-motorbike-brands-in-china/

Veja um exemplo hipotético de como uma situação parecida com a da vw ocorreria para um fabricante qualquer de motos.

Nessa empresa hipotética, como na imensa maioria das empresas no mercado automotivo, todos trabalham com honestidade. Marqueteiros pesquisam e estabelecem as metas de produtos para que a empresa venda mais, engenheiros tentam cumprir as metas de especificações dos produtos que atenderão as preferências dos clientes e as normas governamentais, diretores tentam cumprir as metas de desempenho e lucratividade, acionistas esperam lucrar honestamente com a venda dos produtos da empresa — ninguém trabalha com o objetivo de trapacear deliberadamente os clientes, da mesma maneira que na vw também não.

Onde aparece o problema?

O problema estaria na forma como as empresas são estruturadas estabelecendo metas impossíveis para cada departamento — o resultado é que todos se empenham em cumprir ordens para preservar seus empregos, impossibilitados de fazer análises críticas, incapazes de perceber o resultado global e suas consequências. 


Na prática:

Para atender as metas de baixo consumo e as exigências das novas leis antipoluição, a única maneira encontrada pelos engenheiros desse fabricante de motos seria adotar novas tecnologias.

Por exemplo, o uso de injeção eletrônica de combustível e óleo lubrificante sintético de baixa viscosidade. 

Óleo mais fino ajuda a melhorar o desempenho e o consumo de combustível do motor porque ele gira mais desimpedido, faz menos força para vencer o atrito viscoso do óleo. 


Em compensação, tem um pequeno inconveniente:


Quanto maior a temperatura, ainda mais fino ele se torna, e passa com mais facilidade entre os anéis do pistão e a camisa do cilindro — o óleo é queimado e acaba desaparecendo muito rapidamente do cárteróleo de baixa viscosidade precisa ser reposto com mais frequência.

A engenharia do hipotético fabricante saberia disso, talvez até alertasse os outros departamentos, mas essa informação nunca chegaria aos clientes, porque comercialmente isso pegaria muito mal.

Alertar os clientes de que a moto iria consumir mais óleo desestimularia as vendas já não muito boas, ainda mais quando os consumidores estão engolindo a contragosto a novidade pelo fato de o óleo sintético ser bem mais caro.

De qualquer forma, mesmo que um ou outro problema surgisse antes do fim da garantia, legalmente a empresa estaria coberta — a documentação entregue ao cliente, o manual do proprietário, sempre mandou verificar o nível de óleo todos os dias. Se o dono da moto não faz isso, ou faz o procedimento errado, o problema é dele.

Então, para compensar essa desvantagem comercial do alto custo e maior necessidade de reposição de óleo, os departamentos de marketing e vendas fariam o seu trabalho de enfocar apenas os pontos positivos — eles precisam cumprir suas metas de aumentar as vendas. 

Veja que isso não caracteriza desonestidade da parte de ninguém, é apenas uma consequência da segmentação e departamentalização de todas as grandes empresas, onde cada departamento busca suas metas e todos perdem a visão global.
Parece que funciona, só que não...
Para vender melhor o peixe, os benefícios da alta qualidade e resistência à degradação do óleo sintético que resultariam em maior intervalo entre as trocas seriam enaltecidos — o cliente acabaria economizando e prolongando a vida do motor, diriam as propagandas.

E ninguém falaria nada sobre a necessidade de repor o óleo com mais frequência, um fator que não ajudaria a alavancar as vendas — ninguém divulgaria informações que poderiam afugentar clientes para a concorrência e isso não seria por malícia, mas pela dinâmica dos negócios.

Em algum momento do processo, a informação sobre eventuais problemas decorrentes dessa mudança do óleo desapareceria, se perderia no mar de informações gerenciadas. 

Mas o diabo mora na terra de ninguém, aquela zona cinzenta onde nenhum dos departamentos tem autoridade claramente estabelecida... 

E isso faria acontecer algo que nenhum dos departamentos seria capaz de prever devido à sua visão segmentada do produto...

Infelizmente, a ênfase na durabilidade e maior intervalo de troca do óleo sintético foi interpretada pelos clientes como "usando um óleo tão bom, não preciso me preocupar entre uma troca e outra"... e eles deixaram de verificar se aquele óleo tão bom estaria sendo consumido.

Além disso, os engenheiros não consideraram, ou sua argumentação não foi levada em conta pelo pessoal de marketing e vendas, que a solução aceitável para o país de clima temperado onde ficava a sede da empresa, o Kilongequistão, não era adequada para países tropicais como o Brasil.

Para funcionar no limite da viabilidade técnica com a mesma viscosidade do país original, os motores com o novo óleo fino dependeriam de uma manutenção rigorosa por parte dos clientes... e essa manutenção já não era rigorosa nem mesmo por parte da própria rede de concessionárias da marca muito antes da adoção do óleo fino.


Muitas de suas concessionárias não supervisionadas adequadamente continuariam usando uma prática temerária: 

Após as revisões, permaneceriam entregando as motos aos clientes apenas com a quantidade mínima de óleo, como sempre fizeram e poucos problemas tiveram em dezenas de anos. Aliás, por causa disso venderam muitas peças de reposição — o que sempre ajudou a cumprir as metas de vendas do fabricante e dos donos de concessionárias.

Os clientes confiantes na marca e na rede de concessionárias nunca imaginaram que a marca e a rede seriam capazes de uma prática moralmente condenável como essa.

Os proprietários nunca perceberam que suas motos novinhas já saíam da loja pedindo mais óleo a cada revisão porque com o óleo antigo os motores só davam problema muito tempo depois, e eles achavam esse prazo mais ou menos tolerável.

Acostumados a repor o óleo apenas em motos bem rodadas, os clientes não imaginariam que nessas motos com nova tecnologia o óleo mais fino iria desaparecer do cárter em uma velocidade absurdamente mais alta.

O resultado é que as motocicletas desse fabricante hipotético começariam a fundir o motor ainda em garantia e em quantidades nunca antes vistas na história deste país...

Isso seria um desastre para a imagem da empresa.

Em pouco tempo ela seria obrigada a apelar para expedientes como conceder trocas de óleo gratuitas na esperança de prolongar a vida dos motores.

Esse expediente fracassaria porque os clientes não ficariam satisfeitos com o alto custo das revisões em concessionária.


Com a quantidade de motos com o motor detonado e as críticas ao fabricante aumentando dia a dia, clientes migrando para a concorrência jurando que nunca mais comprariam motos da marca — desse jeito a empresa logo seria obrigada a reformar totalmente seus modelos recém lançados.

Aprimorar o projeto seria necessário para evitar que o óleo desaparecesse tão rapidamente do cárter, e assim conseguisse aumentar a sobrevida dos motores pelo menos até depois do fim da garantia.


Mas será que a empresa teria a coragem de tomar a iniciativa de adotar a solução que eliminaria de vez o problema?


- Assumir que as informações do manual do proprietário induzem a erro e corrigi-las,

- Dizer claramente para seus clientes que a quantidade de óleo em cada troca é maior do que aquela especificada no manual do proprietário, 


- Publicar amplamente na imprensa nacional, de maneira esclarecedora — e não da maneira que induz a erros de interpretação, como feito no manual do proprietário — o procedimento de medição correto do nível de óleo e sua complementação, de maneira que os clientes nunca mais sejam enganados quanto a isso, e todos fiquem sabendo, mesmo que não levem mais as motos a concessionárias,

- Informar claramente aos clientes de que agora eles precisam ser ainda mais cuidadosos com a verificação do nível de óleo, 


- Fiscalizar e obrigar suas concessionárias a cumprir rigorosamente os procedimentos de troca de óleo estabelecidos pelo fabricante, sem omitir a complementação necessária... 


Será que ela faria isso?

Afinal, as coisas do jeito que sempre foram sempre permitiram atingir as metas de vendas de peças de reposição e novas motos.

Abrindo mão da condição atual, como ficariam as metas de lucros e vendas futuras com as motos durando bem mais e consumindo menos peças de reposição?

Assim como no caso da vw, não há um único vilão nessa história da empresa hipotética.

O estabelecimento de metas cada vez mais elevadas, chegando à impossibilidade de serem atingidas, e sem encontrar resistência por parte daqueles que teriam a obrigação de socar a mesa e dizer não, dá origem a distorções que podem naufragar um transatlântico, uma empresa ou um país.


Pessoas sem nenhum pé na realidade e sem visão de longo prazo estabelecem uma meta e, quando a meta é atingida, dobram a meta — isso não pode dar certo.


O castelo de cartas vai crescendo cada vez mais alto até que chega um momento em que... 

Claro, este é apenas um exemplo hipotético.

Nenhum fabricante de veículos inteligente deixaria a situação chegar a tal ponto.


Ninguém daria um tiro tão estupidamente grande no próprio pé a ponto de destruir a reputação de qualidade e a confiança da clientela duramente conquistadas.

Ops, a vw deu... 


Será que alguém mais?

Um abraço,


Jeff

2 comentários:

  1. Minha moto é uma titan 150 ex ano 2011 com ingeção eletronica. ta com 23 mil km rodados...no manual a honda recomenda o oleo 10w30..mas eu queria saber si posso usar o oleo mineral 20w50 pra garantir uma vida util maior do motor??

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    1. http://minhaprimeiramoto.blogspot.com.br/2013/12/o-que-quer-dizer-sae-10w-30-e-sae-20w-50.html

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